Saggi

Perfil de Leopardi prosador

 

 

Giuseppe Sangirardi

 

Université de Bourgogne

Giuseppe.Sangirardi@u-bourgogne.fr


 

Se Leopardi prosador não é mais para nós, como foi para tantas gerações de leitores que nos precederam, a sombra do Leopardi poeta, a sua imagem permanece, de qualquer modo, acometida por um defeito de luminosidade. Essa condição de opacidade da prosa leopardiana – que se mede, pelo menos na Itália, na relação com a poesia – é o efeito de muitas circunstâncias, dentre elas, principalmente, a indiscutível primazia do verso na tradição literária italiana até o século XIX, que orienta (ao lado de um preconceito romântico) a nossa crítica literária de De Sanctis a Croce e outros (salvo as devidas exceções).[1] Mas a hierarquia entre poesia e prosa na obra leopardiana encontrou importante sustentação na própria postura de Leopardi, que várias vezes declarou e mostrou uma afeição secreta e mais visceral por uma linguagem poética. Como comprovação, podemos recorrer a duas declarações situadas nos extremos de um arco cronológico que inscreve boa parte do percurso do pensamento leopardiano. A primeira é uma afirmação feita quase acidentalmente em uma carta escrita a Giordani, de 30 de maio de 1817:

 

Io comechè, forse p[er] inclinazione di natura, ami con certa parzialità la poesia, pure leggo e studio, come posso, i prosatori, e in leggerli non mi fo forza, ma provo un diletto infinito e squisitissimo. E benchè creda che non si debba cercare di divenire eccellente in molti generi, non per questo mi pare che io anche coltivando la poesia, abbia a lasciar da banda la prosa, perchè sarebbe bene meschino letterato quegli che non sapesse scrivere altro che versi. E però io mi studio di coltivare ambedue i generi di scrittura insieme, e quasi con pari sollecitudine.[2]

 

Essa precoce profissão (de um Giacomo novato na literatura, que ainda não havia inaugurado o canteiro do Zibaldone e tinha em mãos apenas o poema Appressamento della morte) é impulsionada por um debate travado com o mestre classicista Pietro Giordani sobre a oportunidade que um jovem literato tem de começar a sua formação pela poesia (como faz Leopardi), ou pela prosa (come queria Giordani). A primazia que o jovem Leopardi atribui à poesia aparece mais claramente na carta precedente, de 30 de abril, em que esboça a solidariedade entre a poesia, natureza e paixões juvenis de um lado e a prosa, frieza e maturidade do outro; carta esta que teremos a oportunidade de retornar.

A segunda demonstração é de onze anos mais tarde, extraída desta vez do Zibaldone e se refere ao momento caracterizado pela descoberta de uma lírica subjetiva universal e moderna, em suma, dos denominados cantos ‘pisano-recanateses’:

 

Il poeta non imita la natura: ben è vero che la natura parla dentro di lui e per la sua bocca. I’ mi son un che quando Natura parla, ec. vera definiz. del poeta. Così il poeta non è imitatore se non di se stesso (10. Sett. 1828). Quando colla imitaz. egli esce veramente da se med., quella propriam. non è più poesia, facoltà divina; quella è un’arte umana; è prosa, malgrado il verso e il linguaggio. Come prosa misurata, e come arte umana, può stare; ed io non intendo di condannarla (10. Sett. 1828).[3]

 

O leitor de Leopardi sabe que nos anos entre as cartas de 1817 a Giordani e a anotação feita no Zibaldone, o pensamento leopardiano viveu extraordinárias aventuras que redesenharam seu contorno e até mesmo chegaram a transformar seus princípios: entre as consequências desses acontecimentos, visíveis na passagem de uma citação a outra, existe a erosão da confiança classicista na imitação, inseparavelmente ligada à perda da confiança em uma natureza ‘objetiva’ como fonte do belo. E, todavia, em sutil contradição com essas duas mudanças, encontram-se dois outros fatos: que o valor fundador da natureza em relação à poesia é recuperado através do filtro da subjetividade (ao invés da natureza ‘físico-metafisica’, agora é a natureza ‘psicológica’ a fonte do poético), e que a poesia continua a exercitar uma indiscutível hegemonia em relação à prosa, ainda que dissociada da distinção retórica de ‘gêneros de escrita’.

Mas se de análogas formulações passamos a observar a prática leopardiana, a primazia do poético sobre o prosaico deixa de parecer tão evidente. Retorna em uma convenção já difundida de contrapor a sumidade poética dos Canti à prosaica das Operette morali, e esse paralelismo não é, por sua vez, – por mais paradoxal que possa parecer depois do que foi dito até agora – privado da autorização implícita de Leopardi, que, como se sabe, declarou ser o livro das Operette «frutto della [sua] vita finora passata», o qual ele considerava muito importante (carta ao editor Stella, em 12 de março de 1826).[4] Mas se o livro dos Canti não está distante de esgotar os títulos da produção do Leopardi poeta (ao qual se pode acrescentar seguramente os excêntricos Paralipomeni, mas depois quase nada além do que tenha saído das reservas de caça de eruditos e especialistas), o catálogo dos escritos em prosa está longe de se reduzir às Operette. Para começar, pensa-se, naturalmente, no Zibaldone, que Leopardi certamente não contava como uma de suas obras, mas que acabou se tornando inexoravelmente aos olhos dos que lhe sucederam, a ponto de ganhar uma imagem de texto leopardiano por excelência ao lado dos Canti e, possivelmente, mais que as próprias Operette,[5] seguramente mais que os tardios Pensieri, que também merecem ser considerados como livro de prosa aforística, cuja imagem foi lentamente depositada no arquivo dos projetos leopardianos até encontrar uma concretização apenas nos últimos meses de vida. No plano dos escritos privados promovidos pelos leitores a textos literários devem-se contar também as cartas, que da prosa leopardiana oferecem uma imagem variada, muitas vezes familiar, íntima e cativante, projetada (como também a do Zibaldone) no horizonte da prosa do século XX. E permanecendo sempre em um espaço leopardiano de domínio público, os últimos decênios de crítica e de operações editoriais fizeram aparecer textos muito diferentes entre si como as Memorie del primo amore (lúcido e precoce diário analítico de uma paixão amorosa, interessante também porque foi escrito paralelamente a um texto em versos), o Discorso di un italiano intorno alla poesia romantica (texto juvenil que permaneceu inédito, mas que hoje é um documento imprescindível e esclarecedor do debate cultural da primeira metade do século XIX e também uma união da originalidade irredutível da posição poética e filosófica de Leopardi) e o Discorso sopra lo stato presente dei costumi degl’Italiani (‘ensaio’ de cunho iluminista,[6] também inédito, mas hoje considerado como um diagnóstico revelador, entre filosofia e sociologia ante litteram, da identidade nacional). Os títulos listados até agora nos fornecem uma imagem evidente não apenas da grande vitalidade do catálogo da prosa leopardiana, mas também da sua notável amplitude de temas e gêneros, que se estende do diário amoroso ao tratado sociológico, da sátira filosófica à teoria literária. Mas tal extensão resulta ainda limitada em relação a real, que compreende, ao lado dessas obras que hoje fazem parte do patrimônio cultural comum, uma série de outras vozes de natureza, designação e importância diversas: dos volumosos escritos eruditos da adolescência (Storia della Astronomia, Saggio sopra gli errori popolari degli antichi) às embrionárias «prosette satiriche» (casulo de onde sairão as diferentes Operette morali e os Pensieri), dos numerosos esboços de poesia ou prosas literárias realizados ou não à rica série de ‘paratextos’ que acompanham as várias publicações, em cartas, discursos, notícias e outros escritos de tipo filológico e linguístico (esses últimos devem-se considerar não como marginais na atividade de Leopardi, como, a seu tempo, já mostrou Timpanaro). O panorama da prosa leopardiana poderia, então, tornar-se vertiginoso, quando se examinasse (como seria legítimo) aquele prolongamento fantástico da biblioteca real, constituído das catorze listas dos chamados desenhos literários (cronologicamente compreendidos, com muita probabilidade, entre 1819 e 1834), nos quais vemos ganhar espaço algumas ‘tentações’ às quais a prosa leopardiana nunca conseguiu ceder, como a do romance histórico-psicológico (ver o primeiro dos desenhos, «Storia di una povera Monaca nativa di Osimo...»), ou assumir proporções titânicas instâncias diversamente comprovadas por obras mais comedidas ou em forma fragmentária (Della condizione presente delle lettere italiane libri sette, de 1819, e Dizionario enciclopedico della letteratura, de 1826; Della natura degli uomini e delle cose, summa de metafisica imaginada em fevereiro de 1829). Sobrevoando o território da prosa leopardiana, em suma, percebe-se com angústia que a sua extensão e variedade não apenas não permite considerá-lo como uma pacífica província menor em relação à da poesia, mas torna árdua a própria procura por uma sua identidade: o que tem em comum, de fato, a escrita cômica das «prosette satiriche» e a ensaística do Discorso sopra lo stato presente dei costumi degl’Italiani, essa e a prosa íntima e lúcida das Memorie del primo amore, essa e a língua artística e multíplice das Operette morali, essa e a escrita fluída, dolorosa, familiar  e lucidíssima do Zibaldone?

Colocada essa multiforme paisagem da prosa, a identidade que podemos procurar é a de um perfil, da linha que define as fronteiras do espaço que Leopardi reserva à prosa. Essa linha, então, não poderá ser encontrada na zona liminar de atrito entre os dois territórios que ganham forma um em relação ao outro, o da prosa e o da poesia.[7] Voltemos, então, à já lembrada carta a Giordani, de 30 de abril de 1817, que por sua precocidade nos oferece um testemunho precioso sobre a inclinação originária de Giacomo pela poesia e, sobretudo, sobre a ótica da sua primeira leitura das competências da poesia e da prosa:

 

Da che ho cominciato a conoscere un poco il bello, a me quel calore e quel desiderio ardentissimo di tradurre e far mio quello che leggo, non han dato altri che i poeti, e quella smania violentissima di comporre, non altri che la natura e le passioni, ma in modo forte ed elevato, facendomi quasi ingigantire l’anima in tutte le sue parti, e dire, fra me: questa è poesia, e per esprimere quello che io sento ci voglion versi e non prosa, e darmi a far versi. Non mi concede Ella di leggere ora Omero Virgilio Dante e gli altri sommi? Io non so se potrei astenermene perchè leggendoli provo un diletto da non esprimere con parole, e spessissimo mi succede di starmene tranquillo e pensando a tutt’altro, sentire qualche verso di autor classico che qualcuno della mia famiglia mi recita a caso, palpitare immantinente e vedermi forzato di tener dietro a quella poesia. E m’è pure avvenuto di trovarmi solo nel mio gabinetto colla mente placida e libera, in ora amicissima alle muse, pigliare in mano Cicerone, e leggendolo sentire la mia mente far tali sforzi per sollevarsi, ed esser tormentato dalla lentezza e gravità di quella prosa per modo che volendo seguitare non potei, e diedi di mano a Orazio. E se Ella mi concede quella lettura, come vuole che io conosca quei grandi e ne assaggi e ne assapori e ne consideri a parte a parte le bellezze, e poi mi tenga di non lanciarmi dietro a loro? Quando io vedo la natura in questi luoghi che veramente sono ameni (unica cosa buona che abbia la mia patria) e in questi tempi spezialmente, mi sento così trasportare fuor di me stesso, che mi parrebbe di far peccato mortale a non curarmene, e a lasciar passare questo ardore di gioventù; e a voler divenire buon prosatore, e aspettare una ventina d’anni per darmi alla poesia, dopo i quali, primo, non vivrò, secondo, questi pensieri saranno iti; e la mente sarà più fredda o certo meno calda che non è ora. Non voglio dire che secondo me, se la natura ti chiama alla poesia, tu abbi a seguitarla senza curarti d’altro, anzi ho per certissimo ed evidentissimo che la poesia vuole infinito studio e fatica, e che l’arte poetica è tanto profonda che come più vi si va innanzi più si conosce che la perfezione sta in un luogo al quale da principio nè pure si pensava. Solo mi pare che l’arte non debba affogare la natura e quell’andare per gradi e voler prima essere buon prosatore e poi poeta, mi par che sia contro la natura la quale anzi prima ti fa poeta e poi col raffreddarsi dell’età ti concede la maturità e posatezza necessaria alla prosa. Non dona Ella niente a quella mens divinior di Orazio?

                       

Nessas linhas se delineia uma verdadeira e própria teoria da poesia, destinada a rechaçar o classicismo racionalista implícito no severo Giordani, na carta de 15 de abril, de seguir um itinerário de formação que privilegie o exercício da propriedade, típico da prosa, em detrimento ao da figuração, próprio da poesia.[8] Ora, se essa teoria coloca em jogo, entre outras coisas, a relação da poesia com a prosa, devemos, antes de qualquer coisa, entender como Leopardi declara a sua predileção pelo verso, já que a sua reflexão é totalmente orientada na definição do poético, e a imagem da prosa é obtida essencialmente per negationem. Isso em duplo sentido: enquanto a caracterização da poesia é amplamente mais rica que a da prosa, enquanto os atributos dessa última parecem uma privação da qualidade da primeira («lentezza», «gravità», frieza em uma, enquanto impulso, elevação e paixão ardente na outra). Trata-se, digamos imediatamente, de uma assimetria definitiva: a meditação de Leopardi sobre a linguagem literária e sobre a poética (no Discorso di un italiano intorno alla poesia romantica e nello Zibaldone, para recordar os principais núcleos de elaboração da estética leopardiana) será quase sempre direcionada a definir a natureza da poesia, servindo-se, possivelmente, da prosa como polo dialético para fazer ressaltar os traços que a identificam. Se não faltam, particularmente no Zibaldone, anotações dedicadas à prosa, suas características e história é, todavia, evidente que Leopardi nos deu uma poética da prosa mais fragmentada que a sua poética da poesia e, principalmente, subordinada a essa. Não que é propriamente a prosa o instrumento da reflexão sobre a poesia; mesmo estando à sombra, a prosa não cessa de dar luz à ribalta da poesia: com um paradoxo que põe em jogo a sua condição de moderno, pois quanto mais Leopardi tende pela poesia, procura dar-lhe um desenho e colher sua essência, mais essa tensão alimenta o fluxo da prosa (e aqui está uma primeira explicação daquela desproporção que notamos entre uma prática em prosa das mais ricas e um relativo desprezo da prosa).

Mas retornemos à carta de Giordani e à sua teoria sobre a poesia, que pelas razões apenas emersas não podemos negligenciar se queremos circunscrever o espaço da prosa. O núcleo da argumentação leopardiana consiste em individuar um nexo genealógico entre psicologia e poesia: a poesia, pode-se dizer, é antes de qualquer coisa uma condição da alma, uma condição que se assemelha ao êxtase. Essa é produzida pela leitura de outros poetas ou pela contemplação da paisagem, e pode também surgir, mais ou menos espontaneamente, na solidão («m’è pure avvenuto di trovarmi solo nel mio gabinetto colla mente placida e libera, in ora amicissima alle muse»); a sua manifestação parece remeter à teoria de origem platônica do furor, do entusiasmo como forma de arrebatamento do poeta por obra de uma força divina que o arrasta para além dos limites do terrestre (uma teoria que, todavia, Leopardi evoca apenas indiretamente, através do filtro atenuante de Horácio,[9] ao qual também pode enviar o chamado sucessivo, na carta, à «fatica» da «arte poetica» que tempera, em sentido racionalista, a posição leopardiana). Mas, tecendo na trama um ideal classicista tipo rousseauniano (digo ideal, porque, neste momento, o conhecimento do pensamento próprio do século XVIII se reduzia com muita probabilidade ao que era filtrado através da leitura de textos eruditos e da apologética católica), Leopardi faz com que o raptus poético dependa não de uma divindade, mas da Natureza, e ali circunscreve o tempo propício à singular juventude. Dado que, ainda à maneira classicista, a inspiração poética se exprime unicamente no verso eis que a escrita em prosa vem ocupar a zona fria que se encontra nas margens da chama poética: assim, em termos psicológicos, a prosa corresponde à «gravità» e à «lentezza» (oposto ao impulso transcendente do furor), e a sua idade é, por decreto da Natureza, a maturidade. Esta distribuição de papéis parece aplicar, em sentido psicológico e filosófico, a teoria retórica da conveniência:[10] essa é, portanto, um exercício de definição racionalista que, todavia, contribui para fazer emergir a primazia da Natureza, com suas pulsações e comoções. A distinção entre prosa e poesia não tem, portanto, um conteúdo retórico explícito, não diz ainda nada sobre o que se deve atribuir a uma e à outra, nem sequer caracteriza estilisticamente as duas linguagens. A carta a Giordani não era uma ocasião para entrar em tais argumentos, mas a elaboração entre estas fundamentais intuições sobre a natureza da poesia e uma visão retórica mais articulada das formas do discurso será trabalho dos anos seguintes.

Entretanto, uma primeira aplicação dessas ideias, mas também uma imediata perturbação da ordem estabelecida, encontra-se no singular experimento de dupla transcrição, em verso e em prosa, do ‘primeiro amor’, apenas oito meses após a carta a Giordani (trata-se, como é conhecido, da Elegia I, que se tornou depois Il primo amore e da prosa do diária que leva convencionalmente o título Memorie o Diario del primo amore).[11] É no mínimo surpreendente, de fato, que a prosa e a poesia, signatárias de funções polares, sejam contemporaneamente convocadas a descrever a mesma experiência psicológica. Na realidade, a prosa do diário alude a uma divisão de tarefas entre prosa e poesia. Assim, de fato, escreve Giacomo ao final do registro dos acontecimentos do primeiro dia (14 de dezembro de 1817):

 

Volendo pur dare qualche alleggiamento al mio cuore, e non sapendo nè volendo farlo altrimenti che collo scrivere, nè potendo oggi scrivere altro, tentato il verso, e trovatolo restio, ho scritto queste righe, anche ad oggetto di speculare minutamente le viscere dell’amore, e di poter sempre riandare appuntino la prima vera entrata nel mio cuore di questa sovrana passione.[12]

 

Blasucci, comentando essa passagem, conclui que «ci troviamo davanti a un vero sdoppiamento dei compiti tra poesia e prosa: alla prima spettò soprattutto quello dell’“alleggiamento”, alla seconda quello della “speculazione”».[13] Observando bem, a bipartição não é tão clara: Leopardi diz que a prosa lhe serve «também» para «especular», o que significa que a função ‘poética’ de ‘consolar o coração’ é aqui, dada a relutância do verso, substituída pelo menos em parte pela prosa.[14] A duplicidade da função da prosa é, de fato, expressamente colocada em evidência na última seção do ‘diário’, datada de 22 e 23 de dezembro: «Chiudo oggi queste ciarle che ho fatte con me stesso per isfogo del cuor mio e perchè mi servissero a conoscere me medesimo e le passioni». É também por este ‘desabafo’, além da lucidez da análise que se abre, que a prosa parece – como observa ainda Blasucci, cujo julgamento parece-me totalmente aceitável – mais eficaz do que a poesia. Eis, então, que as coisas se complicam: apenas introduzidos os conceitos de prosa e poesia, a sua ‘esfera operativa’ apresenta zonas de sobreposição, e a prosa, enquanto assume seu papel ‘reflexivo’ (a respeito da experiência do amor, mas também a respeito da própria experiência da composição poética, que encontra espaço no diário e não nos versos), parece também, de certo modo, preencher o vazio deixado por uma poesia que se revela ‘relutante’.

É sempre Blasucci a ter observado que o desnível entre o registro em prosa e a elegia do ‘primeiro amor’ consiste também no paradoxal artifício do texto, que deveria estar mais voltado à expressão dos afetos, ou seja, em versos. O paradoxo, podemos dizer estendendo esta justa observação, investe, de fato, em toda uma dimensão da poesia leopardiana, e há raízes teóricas que, mencionada na carta a Giordani, aparecem um ano depois no Discorso di un italiano intorno alla poesia romantica. Reagindo às provocações modernistas de di Breme (do qual, todavia, não deveriam parecer-lhe hostis os apelos por uma poesia feita de inspiração e próxima das profundidades do coração), Giacomo radicaliza a ancoragem da poesia na dimensão da natureza, do antigo e do infantil, e lhe determina resolutamente como funções o prazer e o «commercio coi sensi» (p. 915). A poesia, na sua expressão ideal, corresponde, então, mais do que nunca a uma condição psíquica, aquela antigo-infantil, caracterizada pela vitalidade da imaginação e pela primazia do sensual sobre o intelectual, e, portanto, por uma espéice de contínua emanação de princípios e energias que dão vida e transfiguram o mundo exterior. É assim que a ideia platônica de inspiração como exaltação divina se traduz naquela de plenitude infantil de vitalidade, de exaltação natural, por assim dizer, da qual a poesia é a manifestação por excelência. A ideia de poesia como linguagem que captura e exprime a euforia do ser, que contém uma «potenza di allegria» (Zib. 205), que se manifesta «essenzialmente in un impeto» (Zib. 4356), que é «entusiasmo» e «ispirazione» (Zib. 4372) nunca abandonará Leopardi. Mas já em parte no Discorso, e pouco a pouco em modo mais determinado, essa ideia tenderá a configurar um objeto ideal perdido, cuja imagem distante e resplendente é a da poesia antiga «tutta vestita a festa» (Zib. 3876), ao contrário da moderna, sempre forçada a vestir o preto da melancolia. Ora, o paradoxo do qual falávamos consiste no fato que, para um tipo de voluntarismo armado de argumentos classicistas, o jovem Leopardi (no Discorso, mas já na carta a Giordani) considera que essa condição psíquica tipicamente antiga da qual nasce a poesia é acessível para os modernos através da própria poesia, e que a poesia, portanto, para ser ela mesma, não tem outra alternativa senão imitar (através do estudo dos antigos) as manifestações da vitalidade antiga.[15] Eis, então, que, para ser inspirada e impetuosa, a poesia deve ser estudada e artificiosa; e artificiosa não apenas por ser estudada, mas porque a figuralidade do discurso poético é notadamente o caráter no qual se manifesta a sua essência extrovertida, a sua natureza festiva. Se existe alguma coisa que caracteriza o paradoxal classicismo retórico do jovem Leopardi, é, de fato, a conexão genética estabelecida entre a figuralidade da linguagem poética e o entusiasmo que origina a poesia.[16] Por esta razão os ornamentos e os «ardiri» estão tão maciçamente presentes nas canções leopardianas (especialmente naquelas juvenis, mas não apenas nessas), e são, a princípio, considerados externos à prosa. Mais uma vez, a natureza da prosa é uma consequência da natureza da poesia; se a uma convêm estar vestida para festa, para traduzir ou pelo menos imitar os impulsos e o vigor psíquico da condição imaginativa, a outra deverá renunciar (porque deveria ser naturalmente privada disso) a tais ornamentos. É o que Leopardi explica em uma longa anotação do Zibaldone, de 02 de dezembro de 1820, onde censura de maneira classicista a imprópria poeticidade da prosa francesa (373-5):

 

La poesia e la prosa francese si confondono insieme, e la Francia non ha vera distinzione di prosa e di poesia, non solamente perchè il suo stile poetico non è distinto dal prosaico, e perch’ella non ha vera lingua poetica, e perchè anche relativamente alle cose, i suoi poeti (massime moderni) sono più scrittori, e pensatori e filosofi che poeti, e perchè Voltaire p.e. nell’Enriade, scrive con quello stesso enjouement, con quello stesso esprit, con quella stess’aria di conversazione, con quello stesso tour e giuoco di parole di frasi di maniere e di sentimenti e sentenze, che adopra nelle sue prose : non solamente, dico, per tutto questo, ma anche perchè la prosa francese, oramai è una specie di poesia. Filosofi, oratori, scienziati, scrittori d’ogni sorta, non sanno essere e non si chiamano eleganti, se non per uno stile enfatico, similitudini, metafore, insomma stile continuamente poetico, e montato principalmente sul tono lirico. E ciò massimamente è accaduto dopo l’introduzione de’ poemi in prosa, siano poemi propriamente detti, siano romanzi, opere descrittive, sentimentali ec. Ma i francesi che si credono i soli maestri e modelli e conservatori, e zelatori dello scriver classico a’ tempi moderni, non so in qual classico antico abbiano trovato questo costume, per cui non si sa essere elegante nè eloquente, senza andare a quella perpetua, dirò così, traslazione e μετεωρία e concitazione di stile, ch’è propria della poesia. (L’eloquenza di Bossuet, è appunto di questo tenore; tutta Biblica, tutta in un gergo di convenzione; e lo stile biblico, e questo gergo forma l’eloquenza e l’eleganza ordinaria d’ogni sorta di scrittori francesi oggidì). Non mai sedatezza, non mai posatezza, non semplicità, non familiarità. Non dico semplicità nè familiarità distintiva di uno stile o di uno scrittore particolare, ma dico quella ch’è propria universalmente e naturalm. della prosa, che non è uno scrivere ispirato.

 

A usual animosidade polêmica contra a prática francesa induz Leopardi a forjar aqui uma oposição, tanto esquemática quanto preciosa, entre a poesia como escrita «inspirata» e, portanto, ‘figurada’ e a prosa como, dizemos hoje, grau zero da inspiração e, por isso, da escrita. Formulação preciosa porque dá um evidente sentido à lacuna, visível a todos, entre, digamos assim, os versos das canções e a prosa ensaística ou a do Zibaldone. Todavia, tanto para esta oposição retórica quanto para aquela funcional entre ‘discurso do coração’ e ‘discurso da razão’, registram-se, de imediato, fenômenos que a recolocam em causa. Se pensarmos aos esboços das «prosette satiriche»,[17] que na data da anotação no Zibaldone citada acima, Leopardi já tinha verosimilmente em preparação: a sua prosa, a qual atinge um grau suficiente de maturação estilística, caracteriza-se de fato pela riqueza de artifícios e figuras, na qual resiste uma «potenza di allegria» totalmente antiga. Tais artifícios são, de fato, destinados a reproduzir o «frequente uso di similitudini o meglio del parlar figurato e metaforico», próprio da prosa de Luciano de Samósata, inspiração do Leopardi satírico[18]. No espaço da invenção cômica, então, a prosa pode traduzir em artifícios um estado de euforia da língua completamente similar ao que exprime a lírica «tutta vestita a festa»; a festividade da poesia ‘figurada’ é irmã do jogo da prosa ‘cômica’, pois uma e outra remetem à condição antiga de vitalidade da imaginação.

Em suma, pode-se dizer que uma intuição originária da poesia como linguagem da vitalidade (que tem súbitas explosões, está situada em um tempo que não é comum e, por isso, festa e artifício) leve Leopardi, nos primeiros anos de sua carreira intelectual, a distingui-la da prosa como expressão de uma comum atonia vital (forma familiar e usual para o adulto moderno que ele é, que exprime o cotidiano da racionalidade interrompido pelo fogo do entusiasmo[19]) e, ao mesmo tempo, faça com que a prosa se renda à força de atração da poesia, tendendo em direção dela para interrogá-la ou para substitui-la. De outro lado, também sobre o versante da poesia, come observou Blasucci,[20] a prática ultrapassa imediatamente o horizonte da teoria, orientando o discurso no sentido da reflexividade e da melancolia modernas, a despeito da ‘gesticulação’ figural que também aponta para a via do entusiasmo antigo.

Neste momento, a intuição teórica originária (que nunca deixará de estar ativa no pensamento do poeta) deixa muito cedo de levar em consideração a realidade e a persuasão da irremediável desatualização da poesia como voz de uma intacta vitalidade da imaginação: uma persuasão que vem se estabelecer, de modo conflituoso, na consciência, depois de ter secretamente repousado sua sombra sobre a escrita. É de 8 de março de 1821 o célebre pensamento do Zibaldone no qual Leopardi anota a irreparável evolução da poesia da fase «immaginativa» para a fase «sentimentale», mas ao mesmo tempo se recusa a reconhecer uma plena legitimidade dessa última e a considera uma espécie de prosa dotada de acessórios poéticos, mas não do quid que identifica a poesia:

 

La forza creatrice dell’animo appartenente alla immaginazione, è esclusivamente propria degli antichi. Dopo che l’uomo è divenuto stabilmente infelice, e, che peggio è, l’ha conosciuto, e così ha realizzata e confermata la sua infelicità; inoltre dopo ch’egli ha conosciuto se stesso e le cose, tanto più addentro che non doveva, e dopo che il mondo è divenuto filosofo, l’immaginazione veramente forte, verde, feconda, creatrice, fruttuosa, non è più propria se non de’ fanciulli, o al più de’ poco esperti e poco istruiti, che son fuori del nostro caso. L’animo del poeta o scrittore ancorchè nato pieno di entusiasmo di genio e di fantasia, non si piega più alla creazione delle immagini, se non di mala voglia, e contro la sottentrata o vogliamo dire la rinnuovata natura sua. Quando vi si pieghi, vi si piega ex instituto, έπιτηδς, per forza di volontà, non d’inclinazione, per forza estrinseca alla facoltà immaginativa, e non intima sua. La forza di un tal animo ogni volta che si abbandona all’entusiasmo (il che non è più così frequente) si rivolge all’affetto, al sentimento, alla malinconia, al dolore. [...] La poesia sentimentale è unicamente ed esclusivamente propria di questo secolo, come la vera e semplice (voglio dire non mista) poesia immaginativa fu unicamente ed esclusivamente propria de’ secoli Omerici, o simili a quelli in altre nazioni. Dal che si può ben concludere che la poesia non è quasi propria de’ nostri tempi, e non farsi maraviglia, s’ella ora langue come vediamo, e se è così raro non dico un vero poeta, ma una vera poesia. Giacchè il sentimentale è fondato e sgorga dalla filosofia, dall’esperienza, dalla cognizione dell’uomo e delle cose, in somma dal vero, laddove era della primitiva essenza della poesia l’essere ispirata dal falso. E considerando la poesia in quel senso nel quale da prima si usurpava, appena si può dire che la sentimentale sia poesia, ma piuttosto una filosofia, un’eloquenza, se non quanto è più splendida, più ornata della filosofia ed eloquenza della prosa. Può anche esser più sublime e più bella, ma non per altro mezzo che d’illusioni, alle quali non è dubbio che anche in questo genere di poesia si potrebbe molto concedere, e più di quello che facciano gli stranieri.

 

Não há dúvida de que uma reflexão como essa é o sinal de uma mudança da filosofia, da história e da psicologia leopardiana, obrigando até mesmo as noções polares de prosa e poesia a tomarem novos contornos. Todavia, não se pode dizer ao certo que este remodelamento dos espaços da prosa e da poesia seja totalmente inesperado depois de tudo o que temos observado sobre as ‘digressões’ presentes na prática leopardiana. Leopardi reconhece, contrariamente a quanto fazia no Discorso di un italiano intorno alla poesia romantica, que a estrela antiga da imaginação não está em uma fase reversível de eclipse, mas está definitivamente acabada (exceto para as «fanciulli» e os ignorantes). Não que a morte da imaginação comporte a pura e simples morte da poesia, mas a sua substituição por uma linguagem ambígua e impura, na qual os artifícios formais e o ‘ornamento’, que é a marca da função poética, não correspondem mais à festa interior que é a alma da poesia antiga e de toda poesia autêntica: Leopardi parece aqui levar em consideração, em linha teórica, o que já havia acontecido, de fato, nas suas primeiras canções. Por outro lado, esta «eloquenza» «ornata» não é simplesmente ‘poética’ na forma e ‘prosaico’ na substância: se seus artifícios a tornam «più splendida, più ornata» em relação à prosa, não por isso podem lhe dar aquele colorido festivo que só experimentaria pelo ímpeto da imaginação; mas inversamente, o seu conteúdo, embora filosófico, não é totalmente estranho ao coração e às suas comoções, já que o poeta moderno, ainda que raramente e só no registro da melancolia, «si abbandona» sempre «all’entusiasmo» (e isso explica por que, através da «illusione» consciente que esse «genere di poesia» também pode conquistar o «bello» e o «sublime»). Estamos, em suma, diante de uma terceira entidade em relação à prosa e à poesia, a qual Leopardi dá o nome ambíguo (mesmo se mais prosaico que poético) de «eloquenza», e que tanto na forma quanto no conteúdo representa uma espécie de recaída prosaica de um impulso poético que se posiciona contra a pesada presença do real. Essa entidade deve ser considerada paradoxal, porque é fruto de uma espécie de colapso da ordem psicológica: morta a imaginação, o entusiasmo que lhe era associado e que com ela fundava o ato poético, a faz sobreviver constituindo uma nova e quase absurda aliança com a melancolia;[21] o calor da inspiração parece agora poder surgir (ainda que com compreensível dificuldade) do próprio gelo da desilusão:[22] esta incongruente geração de calor vindo do gelo é até agora a única possível, o entusiasmo limitado pela consciência da verdade é, por si só, um entusiasmo morno que se exprime em formas sufocadas. Até agora, a teoria leopardiana via tendencialmente divergirem[23] as estradas da prosa e da poesia, enquanto na prática da escrita as invasões eram frequentes e a prosa aparecia distante da poesia, mas, ao mesmo tempo, continuamente atraída por ela. Neste ponto, a própria consciência de Leopardi registra como inevitável a imbricação dos dois espaços. Mas esta consciência não abole nem a polarização profunda das instâncias poéticas e prosaicas, nem mesmo a sua hierarquia de valor inicial. De fato, não apenas a passagem da poesia de imaginação à «eloquenza ornata» é sentida como uma perda,[24] mas o ressarcimento parcial dessa perda é oferecido pela parcial atração do discurso prosaico na órbita do poético. Se no pensamento de 8 de marzo de 1821 a «eloquenza» que substituiu a poesia de imaginação é ainda um termo metafórico (pois deriva ainda dos versos, mesmo se tenha conteúdo ‘prosaico’), com as Operette morali torna-se claro o mecanismo pelo qual a prosa tende, poetizando-se, a preencher o vazio deixado pela poesia. Entre 1821 e 1823 Leopardi parece, de fato, fascinado pelas hipóteses que trabalham no sentido da fusão dos opostos, do convergir entre prosa e poesia, entre verdade e imaginação, e da concepção de uma série de entidades sintéticas que são prodigiosas: em termos linguístico-retóricos medita sobre a «lingua» como espaço de fusão de «familiare» e «elegante», de «logico» e de «poetico» (Zib. 1313 e 2130-2) e atribui ao perfeito escritor italiano a tarefa de reencontrar na generosíssima natureza de sua língua «il terzo modo» que misture harmoniosamente os opostos (Zib. 3326-9 e 4066-7); em termos gnoseológicos concebe com convicção crescente a analogia entre poesia e filosofia como instrumentos de revelação (Zib. 1383 e 1659) até criar a oxímora fórmula de «entusiasmo della ragione» (Zib. 3383) para colher a impensável fusão de dois posicionamentos contrários da alma.[25]

Essa fase culmina com a escrita das Operette morali, em que o senso de irreparabilidade da perda da poesia acentua paradoxalmente a força de atração que esta desde sempre exercita sobre a prosa, e a escrita em prosa é chamada, ao mesmo tempo, para registrar a morte da poesia e para lhe dar uma nova forma de existência. A prosa das Operette é, entre todas as escritas por Leopardi, a mais visivelmente inclinada à poesia; a sua natureza de escrita ‘inspirada’ (isto é, acompanhada por uma forma de entusiasmo que não exclui o raciocínio, mas inclusive o alimenta) vem manifestada a partir das condições excepcionais da redação (um livro escrito ‘de uma só vez’) e da singular afeição, mais tarde testemunhada pelo autor (em célebres declarações ao editor Stella). A poesia versificada, no mais, encontra espaço no livro (no extraordinário Coro di morti e na tradução simonidea de Parini, além de outras breves citações). Mas ao lado desta que podemos chamar de promiscuidade extrínseca do discurso poético e do prosaico, registra-se uma forma de promiscuidade intrínseca, a interiorização por parte da prosa das qualidades da poesia. Essa promiscuidade é percebida nesses textos em que é mais evidente: o Cantico del gallo silvestre é, como adverte o preâmbulo irônico, «cosa poetica» traduzida em prosa; a Storia del genere umano, mito cosmogônico de transparente fazer antigo, tem ar daqueles «poeti» que «favoleggiarono dell’educazione di Giove» lembrados no começo pela alusão com valor de referente. Todavia, a promiscuidade não é somente acusada, mas é sutilmente denunciada: o estilo do Cantico é «interrotto, e forse qualche volta gonfio» por culpa da natureza da fonte oriental, enquanto a fábula mitológica da Storia exibe um excesso e uma redundância das nuances literárias com efeito de implícita e leve censura.[26] Essa perceptível separação da pátina poética da superfície da prosa está ali para demonstrar que as duas formas permanecem, para Leopardi, irredutíveis uma na outra, mesmo quando está em ato uma espécie de duplo deslizamento de uma no sentido da outra, porque as instâncias psíquicas têm um fundo de irredutibilidade a qual essas dão voz.

Pode-se considerar a prosa das Operette a manifestação mais vistosa da crise que investe a concepção bipolar de prosa e poesia; se dissemos que essas não mudam a hierarquia dos valores é, porém, verdadeiro que dão à prosa uma nova dimensão e lhe conferem, com isto, um novo prestígio. Além disso, a estrada inovadora das Operette não será nunca mais percorrida na prosa por Leopardi. O crédito conquistado pela prosa é investido, nos anos seguintes, em modo regressivo, por assim dizer, com um retorno à prosa como antipoesia. Como se sabe, logo depois das Operette Leopardi abandona a poesia em prol de uma atividade prosaica, tão rica quanto desequilibrada no sentido da razão e da filosofia (se se pensa ao Discorso sopra lo stato presente dei costumi degl’Italiani[27] às vulgarizações morais de Isócrates e Epíteto e aos diversos projetos filosófico-didascálicos projetados nesses anos e atestados pela correspondência e pelas listas de ‘desenhos literários’). A despedida da poesia é também oficialmente vista nos versos bolonheses da epístola a Pepoli, na qual se deve notar que, embora se mantenha o motivo do lamento do «caro immaginar», aparecem pela primeira vez também reconhecidos como reais os «diletti» do «vero», «ancor che tristo».[28] Se o «entusiasmo della ragione» que permitiu a Leopardi, com as Operette, levar a prosa ao território da poesia, tem como efeito fazê-lo abraçar a prosa como a única linguagem consoante ao estado de sua alma, por outro lado, o refluxo daquele «entusiasmo» tira desta linguagem a força que a projetava em direção ao espaço da poesia. Também as Operette escritas nos anos sucessivos (Stratone, Copernico, Plotino e Porfirio, Venditore di almanacchi e Tristano) podem ser consideradas substancialmente respeitadoras dos velhos limites entre prosa e poesia. Uma operetta como o Stratone, aliás, dá uma interpretação particularmente rígida, como acontecerá nos Pensieri mais tardios, em que a prosa do Zibaldone é limada pelas suas curvaturas afetuosas e poéticas e reduzida à expressão de uma condição de gélida impassibilidade, o exato contrário (pelo menos in votis) da escrita inspirada cheia de figuras festivas como deveria ser a poesia. Mas um destino mais obscuro recai sobre a prosa, depois dessa fase de renovada ‘esterilização’, e é o do silêncio – o mesmo silêncio que temporariamente, entre Alla sua donna e Il risorgimento (com a ambígua parênteses de Pepoli), tocou antes a poesia. Com as últimas falas do Dialogo di Tristano e di un Amico e com o fim do Zibaldone, em 1832, a prosa leopardiana cala para sempre (com a compreensível exceção das diluídas  cartas do período napolitano[29]), muito antes da poesia que, ao invés, produzirá nos últimos anos algumas de suas principais obra-prima (das «sepolcrali» ao Tramonto della luna à Ginestra, sem esquecer os Paralipomeni). Estamos agora diante de dois novos paradoxos: no último Leopardi, que deveria ser e parece sempre mais persuadido da inevitabilidade do real, cala não a poesia, mas a prosa; e depois: no Leopardi que já adquiriu teoricamente a mistura necessária, no moderno, de prosa e poesia,[30] prosa e poesia parecem se tornar práticas tendencialmente alternativas, mais do que foram nos anos em que Leopardi teórico lhes determinou uma distinção mais clara.

Na verdade, para tentar não anular, mas circunstanciar esses paradoxos, é preciso ter em mente que depois das Operette morali a poética da prosa e da poesia leopardiana sofre uma reorganização geral que leva à maturação as premissas ideológicas criadas pela descoberta do fim da imaginação. Se é verdade que esta não deixará nunca de ser sentida como uma perda, é também verdadeiro que nos últimos anos dos cantos ‘pisano-recanateses’ Leopardi elabora uma teoria da poesia diferente daquela do Discorso di un italiano intorno alla poesia romantica, na qual o quid de poético não é mais a figuralidade, expressão da vitalidade imaginativa, mas, sobretudo, o indefinido da recordação, com o seu caráter docemente melancólico. A prova dessa mudança é que no interior dessa nova teoria tende a ser reabsorvida a primeira:

 

Un oggetto qualunque, p. e. un luogo, un sito, una campagna, p. bella che sia, se non desta alcuna rimembranza, non è poetica punto a vederla. La medesima, ed anche un sito, un oggetto qualunque, affatto impoetico in se, sarà poetichissimo a rimembrarlo. La rimembranza è essenziale e principale nel sentimento poetico, non p. altro, se non perchè il presente, qual ch’egli sia, non può esser poetico; e il poetico, in uno o in altro modo, si trova sempre consistere nel lontano, nell’indefinito, nel vago (14 Dic. 1828).

 

Alla p. preced. Il piacere che ci danno un certo stile semplice e naturale (come l’omerico), le immagini fanciullesche, e quindi popolari, circa i fenomeni, la cosmografia ec.; in somma il piacere che ci dà la poesia antica e d’immagini; tra le sue cagioni, ha p. una delle principali, se non la principale assolutamente, la rimembranza confusa della nostra fanciullezza che ci è destata da tal poesia. La qual rimembranza è, fra tutte, la più grata e la più poetica; e ciò, principalmente forse, perchè essa è più rimembranza che le altre, cioè a dire, perchè è la più lontana e più vaga (1. del 1829).

 

Enquanto no tempo dos idílios e das canções a poética do vago era englobada na interpretação vitalista da poesia (tratava-se de favorecer os movimentos e a excitação da alma com a indefinição da percepção[31]), no tempo das Ricordanze é a «poesia d’immagini» que se torna uma rubrica da poesia melancólica da recordação (e isto, entre outras coisas, pode explicar o retorno anacrônico de Leopardi às oitavas quase ‘pueris’ dos Paralipomeni). À poesia festiva e extrovertida dos antigos, agora se é sobreposta como uma camada sucessiva (tornando-a invisível sem apagá-la) uma poesia melancólica e introvertida que serve menos para falar com o público do que consigo mesmo[32] e de si mesmo (por isso uma poesia essencialmente lírica, isto é, subjetiva: Zib. 4234 e 4476). Ora, em relação a esta ideia de poesia, a prosa não pode mais se distinguir como a respeito daquela antiga. Como deve ser diferenciada, diz uma passagem do Zibaldone já citada no início desta reflexão:

 

Il poeta non imita la natura: ben è vero che la natura parla dentro di lui e per la sua bocca. I’ mi son un che quando Natura parla, ec. vera definiz. del poeta. Così il poeta non è imitatore se non di se stesso. (10. Sett. 1828). Quando colla imitaz. egli esce veramente da se med., quella propriam. non è più poesia, facoltà divina; quella è un’arte umana; è prosa, malgrado il verso e il linguaggio. Come prosa misurata, e come arte umana, può stare; ed io non intendo di condannarla (10. Sett. 1828).

 

Se a poesia não é mais um discurso que exterioriza em imagens a vitalidade do poeta, mas discurso que verte de uma intimidade secreta, a prosa é simplesmente aquilo que ‘sai’ dessa intimidade, mesmo quando é escrita em versos. Seria ingênuo pensar que essa nova consciência da poesia cancele qualquer marca do passado, e que o último Leopardi não fazia outra coisa além de aplicar esses novos preceitos: a riqueza desta fase poética não é verdadeiramente redutível à fórmula ‘pisano-recanatese’. Mas é certo que levar em consideração esse novo perfil do contraste entre poesia e prosa que se define peremptoriamente no limiar do último tempo leopardiano nos ajuda a entendê-lo. A partir dos cantos pisano-recanateses, a poesia tende a assumir um perfil totalizante, apropriando-se das funções que antes eram divididas com a prosa, justamente porque Leopardi não tem mais vontade de ‘sair de si mesmo’. A sua nova poesia já deu seu olhar melancólico da modernidade e pode manifestar sem complexos a consciência do verdadeiro; aquilo que lhe dá legitimidade, aquilo que continua a fazer disso um discurso ‘inspirado’ (porque a essa exigência Leopardi não faz exceção), é o seu surgir das fontes interiores, por mais escuro que seja o seu escorrer e por pouco melodioso que seja. Mas se a poesia pode se conceder aquilo que por um tempo pertenceria à prosa (de estar, isto é, em contato com o real, com o nu, com o gélido), a prosa quase não tem mais razões de ser: essa se tornou verdadeiramente a sombra da poesia – certamente uma sombra similar àquela de Peter Schlemil di Chamisso, sem a qual não se pode viver.

 

 

Tradução de Andréia Guerini & Andréia Riconi

Universidade Federal de Santa Catarina

 

 



[1] Dentre elas, destaca-se principalmente a admiração que a prosa leopardiana em geral e, particularmente, as Operette morali receberam dos ‘rondisti’ (ver  G. Pulce, Gli scrittori della «Ronda» di fronte alle Operette morali, in «Quel libro senza uguali». Le Operette morali e il Novecento italiano, organizado por N. Bellucci e A. Cortellessa, Roma, Bulzoni, 2000, pp. 163-83).

[2] As citações das cartas foram retiradas de G. Leopardi, Epistolario. Organizado por F. Brioschi e P. Landi, Torino, Bollati Boringhieri, 1998, 2 vols.

[3] As citações do Zibaldone foram extraídas de G. Leopardi, Zibaldone di pensieri, edição crítica e anotada, organizado por G. Pacella, Milano, Garzanti, 1991, 3 vols.

[4] Pode-se, todavia, recordar que anos mais tarde, em uma carta a Carlo Bunsen, de 26 de setembro de 1835, lê-se uma espécie de leve palinódia, pelo menos em relação ao ‘pessimismo’ das Operette: «Voi avete ragione che nelle mie prose la malinconia è forse eccessiva e forse anche qualche volta fa velo al mio giudizio. Datene la colpa parte al mio carattere, e parte all’età in cui furono scritte, perchè a 26 anni le scrissi, e d’allora in qua, benchè ristampate con qualche mia correzione, mai non ho potuto rileggerle interamente fino al giorno d’oggi». Essas declarações não podem ser vistas em modo literal, não apenas pelos evidentes esforços para agradar o interlocutor, mas também porque, entre outras coisas, desmentidas pela recente composição do Dialogo di Tristano e di un Amico, destinado ao livro das Operette, e distante de estar livre de ‘excessos melancólicos’. Mas também não se pode excluir categoricamente que Leopardi estivesse disposto a reconhecer em algum modo esses ‘excessos’, aceitando – como frequentemente faz – assumir a ótica de outros que ecoa em uma parte de suas conflitantes exigências.

[5] Deixaram de ser válidas até mesmo as extremas reservas sobre o ‘estilo’ do Zibaldone, cuja prosa é hoje julgada mais como uma das possíveis formas na qual se coloca a linguagem leopardiana, do que como uma ‘cópia feia’ da verdadeira prosa literária das Operette ou dos Pensieri: ver L. Blasucci, I registri della prosa: Zibaldone, Operette, Pensieri, in AA. VV., Lo Zibaldone cent’anni dopo. Composizione, edizioni, temi. Atti del X Convegno internazionale di studi leopardiani (Recanati-Portorecanati, 14-19 settembre 1998), 2 vols, Firenze, Olschki, 2001, pp. 17-35, em que é também citada uma bibliografia pertinente.

[6] Sobre os seus modelos do final do século XVIII, ver a introdução de M. A. Rigoni a G. Leopardi, Discorso sopra lo stato presente dei costumi degl’Italiani, Milano, Rizzoli, 1998, pp. 5-24.

[7] À definição do ‘espaço da poesia’ são dedicadas uma série de colocações de Luigi Blasucci, em relação às quais me considero, nessas minhas observações, devedor, mesmo quando o débito não se exprime na forma do puro consentimento (ver L. Blasucci, Leopardi e lo spazio della poesia, in Id., I titoli dei Canti e altri studi leopardiani, Napoli, Morano, 1989, pp. 167-71; Id., I tempi dei Canti, in Id., I tempi dei Canti. Nuovi studi leopardiani, Torino, Einaudi 1996, pp. 177-218; Id., Dall’imitazione al rimpianto. Leopardi tra Il discorso di un italiano intorno alla poesia romantica e l’Inno ai Patriarchi, in Humanitas, LIII (1998), pp. 12-28.

[8] «La principal cosa nello scrivere mi pare la proprietà sì de’ concetti e sì dell’espressioni. Questa proprietà è più difficile a mantenere nello stile che deve abbondar di modi figurati, come il poetico, che nel più semplice e naturale, com’è il prosaico: e però stimo da premettere al tentar la poesia un lungo esercizio di prosare» (Leopardi, Epistolario, cit., vol. 1, p. 81). Leopardi, em sua resposta, não contesta a importância da propriedade (bandeira do classicismo purista e racionalista), mas a subordina à escuta da Natureza, dando do classicismo uma interpretação, aliás, endossada, em qualquer modo, pelo Horácio da quarta Satira, para o qual a poesia não consiste no «puris versum perscribere verbis», mas no «ingenium» e na «mens divinor» citada por Giacomo.

[9] A expressão mens divinor usada na carta a Giordani remete a Satire I iv 39 e seguintes, em que Horácio confessa a natureza prosaica dos seus sermões e reserva o título de poesia à inspiração – aquela grandiosa da épica sobre todas – irredutível em relação às regras de versificação. É significativo da complexidade da posição de Leopardi que a sua visão da poesia como inspiração e impulso divino remeta a Horácio, isto é, justamente no autor que nas Osservazioni del Cavalier Lodovico di Breme sulla poesia moderna (manifesto romântico ao qual reage, como se sabe, com o Discorso di un italiano intorno alla poesia romantica) figura (embora não muito certo) como zombador do furor e apóstolo de um classicismo frio, normstivo e estéril. Pode ser também que a aberta reivindicação do furor como valor romântico, que de fato se lê no texto de di Breme, tenha inibido Leopardi de aderir mais abertamente e tenha crescido as reservas que devia, por outro lado, opor-se, especialmente nos anos de juventude, o seu racionalismo (mais tarde, Leopardi falará do «furor dos poetas líricos» como forma suprema de conhecimento na Comparazione delle sentenze di Bruto Minore e di Teofrasto).

[10] Um princípio precoce e profundamente assimilado pelo jovem Leopardi, que coloca em causa expressamente os modernos românticos no Discorso («se volessi chiedere al mondo come abbia potuto nascere in questi tempi chi dimenticasse quella verità originaria e fondamentale, che nelle arti belle si richiede la convenienza, vale a dire che nessuna cosa stia fuori di luogo, la qual verità si para spontaneamente innanzi a chiunque considera tanto o quanto la natura o di esse arti o degli uomini o delle cose», G. Leopardi, Discorso di un italiano intorno alla poesia romantica, in Id., Tutte le opere, com introduçãi e  organização de W. Binni com a colaboração de E. Ghidetti, Firenze, Sansoni, 1969, 2 vols., vol. 1, p. 939). Sobre a importância da formação retórica de Leopardi tem insistido ultimamente M. Manotta, Leopardi. La retorica e lo stile, Firenze, Presso l’Accademia della Crusca, 1998.

[11] Confira a propósito L. Blasucci, Alle origini della poesia leopardiana: «Il primo amore», in Id., I titoli..., cit., pp. 13-28; N. Bellucci, Dal diario ai versi d’amore. Scrittura e malinconia nel primo Leopardi, in «La Rassegna della letteratura italiana», 99 (1995), pp. 87-110; P. Girolami, L’«office du miroir». Autobiografia, pensiero e poesia nel Diario del primo amore, ivi, 103 (1999), pp. 81-99.

[12] Citação de G. Leopardi, Scritti e frammenti autobiografici, a c. di F. D’Intino, Roma, Salerno, 1995, pp. 18-9.

[13] Blasucci, Alle origini..., cit., p. 17.

[14] Na verdade, muito se teria a dizer sobre essa resistência oposta do verso: lendo o diário, é impossível não ter a impressão de que o jovem Leopardi mais do que descrever uma paixão real, queria representar uma paixão poética, que lhe sirva como crédito para entrar no grupo dos poetas e das almas sensíveis. Neste sentido, a dificuldade do verso funciona como garantia da bondade da sua teoria da inspiração ‘natural’ da poesia: onde não existe autêntico ‘entusismo’ não pode existir uma autêntica linguagem poética. Em suma, estamos perto do ‘desejo triangular’ de que falou René Girard: Giacomo, então com 19 anos, deseja menos a visitante que a prova, fornecida pela paixão, de ter um coração sensível à altura da grande tradição literária (que nesse caso é incorporada, sobretudo, pela Vita de Alfieri, cuja influência sobre o diário leopardiano já está, há algum tempo, comprovada), e por isso se apressa em adotar os primeiros sintomas de enamoramento como se fosse uma paixão ardente (mas, ao mesmo tempo, obriga-se a registrar e interpretar todos os sintomas contrários, de tenuidade, de sua paixão).

[15] «Ora da tutto questo e dalle altre cose che si son dette, agevolmente si comprende che la poesia dovette essere agli antichi oltremisura più facile e spontanea che non può essere presentemente a nessuno, e che a’ tempi nostri per imitare poetando la natura vergine e primitiva, e parlare il linguaggio della natura (lo dirò con dolore della condizione nostra, con disprezzo delle risa dei romantici) è pressochè necessario lo studio lungo e profondo de’ poeti antichi» (Leopardi, Discorso di un italiano..., cit., pp. 930-1).

[16] Isso nos ajuda a entender a famosa reflexão do Zib. 143-44 (do final de junho de 1820), que projeta sobre a «carreira poética» leopardiana, as mesmas fases que caracterizam a evolução da civilização em geral e da literatura em particular, com uma passagem de «versi...pieni d’immagini» e di «fantasia» a uma «immaginazione... sommamente infiacchita» e uma faculdade inventiva que verte «sopra affari di prosa, o sopra poesie sentimentali», passagem aqui expressamente datada de 1819; muito embora, como observou Blasucci (Dall’imitazione..., cit., pp. 17-8), na prática poética tinha, de fato, precedido a data indicada por Leopardi, as primeiras canções sendo na essência igualmente ‘sentimentais’ como aquelas escritas mais tarde.

[17] Segundo a definição dada pelo próprio Leopardi na carta a Giordani do dia 4 de setembro de 1820.

[18] Para o programa estilístico das «prosas satíricas» me permito fazer referência ao meu livro Luciano dalle ‘prosette satiriche’ alle Operette morali, in AA.VV., Il riso leopardiano. Atti del IX Convegno internazionale di studi leopardiani, Firenze, Olschki, 1998, depois agregado em G. Sangirardi, Il libro dell’esperienza e il libro della sventura. Forme della mitografia filosofica nelle Operette morali, Roma, Bulzoni, 2000.

[19] Esta percepção da prosa como linguagem do átono mas contínuo, oposto ao estridente mas descontínuo que é a poesia, se manifesta também no uso da prosa preferencialmente para ‘grandes enredos’, reais (se pensarmos nos escritos eruditos juvenis, mas também, a seu modo, nas Operette) ou somente imaginados (os vários projetos de autobiografia, enciclopédia, tratado filosófico que acompanham como um sonho paralelo de escrita todo o percurso da escrita real).

[20] Dall’imitazione..., cit., pp. 17-8.

[21] Psicologicamente podemos, de fato, explicar esta nova aliança: a melancolia sendo o luto pela perda dos objetos da imaginação, ainda ‘contém’, em certo modo, estes objetos e pode, portanto, suscitar o entusiasmo.

[22] Estamos no famoso paradoxo expresso no Zib. 259-61: («Hanno questo di proprio le opere di genio, che quando anche rappresentino al vivo la nullità delle cose [...] tuttavia ad un’anima grande che si trovi anche in uno stato di estremo abbattimento [...] servono sempre di consolazione») e no aforisma anotado já na página seguinte: «L’uomo si disannoia per lo stesso sentimento vivo della noia universale e necessaria».

[23] Todavia, até mesmo nos pronunciamentos teóricos, como já se viu na prática da escrita, não faltam as isenções ou, pelo menos, as atenuações do princípio prevalente de separação entre prosa e poesia, começando pela anotação que se encontra nas primeiras páginas do Zibaldone, nas quais Leopardi aprova a definição da prosa como «nutrice del verso» (Zib. 29).

[24] Oportunamente, destacou Blasucci, Dall’imitazione..., cit., pp. 19 e seguintes.

[25] Se Blasucci tem razão ao notar que se trata de um «concetto...in sé paradossale e drammatico» (Blasucci,  Dall’imitazione..., cit., p. 26 n. 29), é verdade que essa tensão no sentido do paradoxo conceitual em matéria de dialética entre prosa, poesia, filosofia e imaginação caracteriza os anos entre 1821 e 1823.

[26] Para uma reflexão mais ampla sobre a pátina poética da Storia del genere umano indico Sangirardi, Il libro dell’esperienza..., cit., em particular o cap. III.

[27] Continuo, com Savarese, a encontrar mais sintonia com o Leopardi de 1826 que com o de 1824, apesar dos bons argumentos contrários expostos por M. Dondero, Leopardi e gli Italiani. Ricerche sul Discorso sopra lo stato presente dei costumi degl’Italiani, Napoli, Liguori, 2000 (argumentos que mereceriam uma discussão aprofundada). Ainda no caso que o Discorso seja de 1824, de qualquer modo, o sentido das minhas observações não seria substancialmente comprometido por isso.

[28] Na mesma linha, a carta, também bolonhesa, de 5 de junho de 1826, a Francesco Puccinotti, na qual a recomendação para abandonar o verso pela prosa é motivada não apenas pela usual renúncia à triste natureza do ‘século’, mas também por uma razão ‘positiva’, que consiste na possibilidade de investimento social e no valor em amplo sentido ‘civil’ de uma literatura de prosa e de pensamento (e trata-se de uma avaliação contemporânea à primeira publicação de três operette em forma de ensaio na Antologia.)

[29] Exceção menos importante de quanto parece é também o livro dos Pensieri preparado (mas não acabado) nos últimos anos de vida (mas já a partir da estadia em Recanati em 1829), porque os seus materiais são extraídos em grande parte do Zibaldone e ao último Leopardi pertence (embora não seja um elemento a ser subestimado) apenas o projeto que dá a sua forma.

[30] Pode servir como prova, entre outras coisas, o aparecimento entre os últimos ‘desenhos literários’ (lista XIII) do «Poema in prosa», ou seja, precisamente aquela forma que era estigmatizada (na anotação do Zibaldone de dezembro de 1820, já citada no texto) como responsável pela confusão tipicamente francesa entre prosa e poesia.

[31] Cfr., por exemplo, Zib. 100 (8 de janeiro de 1820): «È cosa osservata degli antichi poeti ed artefici, massimam. greci, che solevano lasciar da pensare allo spettatore o uditore più di quello ch’esprimessero [...]. Perchè descrivendo con pochi colpi, e mostrando poche parti dell’oggetto, lasciavano l’immaginazione errare nel vago e indeterminato di quelle idee fanciullesche, che nascono dall’ignoranza dell’intiero. Ed una scena campestre p. e. dipinta dal poeta antico in pochi tratti, e senza dirò così, il suo orizzonte, destava nella fantasia quel divino ondeggiamento d’idee confuse, e brillanti di un indefinibile romanzesco, e di quella eccessivamente cara e soave stravaganza e maraviglia, che ci solea rendere estatici nella nostra fanciullezza».

[32] Já, por exemplo, no Zib. 3975 (12 de dezembro de 1823) se encontra a imagem do poeta moderno que «va poetando seco stesso»; e essa tendência de ver na poesia um discurso que não sai do círculo de intimidade do poeta consigo mesmo, encontra um coroamento nas anotações feitas em Pisa, que anunciam o ‘ressurgimento’ poético (Zib. 4302), e que dão à poesia a função de aquecer a velhice do poeta com a memória dos «sentimenti passati».